Na encruzilhada das águas e dos conhecimentos tradicionais: necessários diálogos e controle social

Na encruzilhada das águas e dos conhecimentos tradicionais: necessários diálogos e controle social

Autor(es): Sandra Akemi Shimada Kishi
Ano de Publicação: 2016

Resumo

O Brasil é o país mais rico em diversidade biológica no planeta. Considerando os 17 países de maior biodiversidade, dentre os quais figuram os Estados Unidos, China, Índia, África do Sul, Indonésia, Malásia, o Brasil ocupa a primeira posição com larga margem de diferença, eis que detém em torno de 20% do total de espécies do planeta. Apenas para ilustrar, enquanto a Suíça tem apenas uma planta “endêmica”, a Alemanha, 19 e o México, 3000, o Brasil, tão somente na Amazônia tem 20.000 espécies que só ocorrem naquele bioma. Demais disso, nosso país possui um potencial de 2 trilhões de dólares enraizado em sua flora e fauna. 3 Hoje 25% dos produtos comercializados têm suas origens em recursos biológicos. No processo de mundialização econômica, 73% do mercado, no Brasil, são ocupados por empresas estrangeiras. Se nenhuma empresa brasileira tem condições de competir no mercado para o desenvolvimento tecnológico de um novo produto, o que dizer dos povos tradicionais, detentores verdadeiros dos conhecimentos e das técnicas tradicionais associados aos recursos naturais?4 Para pioria da situação da crise de governança dos povos tradicionais sobre seus conhecimentos coletivos imemoriais, em violação de seu direito à autodeterminação, está em trâmite no Congresso Nacional (ora no Senado Federal) um projeto de lei5 que despreza a garantia fundamental da consulta prévia aos povos tradicionais, sem o devido reconhecimento da outricidade, parafraseando Leff, e da alteridade. De outro lado, no que atina ao direito humano fundamental de acesso à água potável e ao saneamento básico, duas em cada três pessoas não terão acesso à água até 2025; 18% da população mundial não tem acesso à água de qualidade; 1,5 milhão de seres humanos está privado do acesso direto à água e 2,5 bilhões não contam com soluções para os esgotos sanitários.6 A Convenção da ONU de 1997 sobre águas destaca a disputa das água,s vislumbradas a escassez e a possibilidade de um colapso hídrico de âmbito global. Todos os cenários, mesmo os mais otimistas, apontam que hodiernamente vários países, em todos os continentes do globo estão em situação descrita como de “stress” hídrico. Concentram-se no Brasil 13% de águas doces do planeta, mas 80% disto encontram-se somente na região hidrogáfica amazônica7 , enquanto no Sudeste, a relação se inverte, sendo que a maior concentração populacional do país tem disponível 6% do total da água. Na zona costeira a água potável está cada vez mais rara e mais cara.8 A água, como um bem vital à humanidade e em seu referencial econômico e jurídico, está sujeito à gestão pelo Poder Público que deve estabelecer critérios para garantia de usos múltiplos, estabelecendo, especialmente em tempos críticos de crise, objetivas regras para usos mínimos necessários para faixas de usos prioritários dentro do que possa ser considerado como consumo humano e dessedentação de animais, com garantia de acesso qualitativo e quantitativo a todos. O Brasil posicionou-se na sessão plenária da Assembléia Geral das Nações Unidas pelo direito à água e ao saneamento básico como intrinsecamente ligados aos direitos à vida, à saúde, à alimentação e à moradia adequada. Nesta sessão em 28.7.2010, a Assembléia Geral nas Nações Unidas editou a Resolução 64/2929 , tendo reconhecido o direito à água como um direito humano fundamental. O respeito aos direitos e garantias dos povos tradicionais, no âmbito internacional está expresso na Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento das Nações Unidas, por resolução editada em 198610. Com efeito, logo em seu artigo 1º, nos itens 1 e 2 está prescrito que o direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável e implica na plena realização do direito dos povos à autodeterminação, nele considerado o direito de soberania sobre as suas riquezas e recursos naturais. Significa dizer que o desenvolvimento pressupõe a necessária proteção da sobiobiodiversidade, que busca tutelar a vida em suas diversas formas, com imprescindível equidade social, que por sua vez, pressupõe seja levada em conta a vulnerabilidade de certos grupos sociais, como é o caso dos povos tradicionais. A Convenção nº 169, da Organização Internacional do Trabalho – OIT sobre povos indígenas e tribais, adotada em Genebra em 1989 e que no Brasil é norma com força cogente11, determina que os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições, bem estar espiritual e as terras que ocupam, com o controle, na medida do possível do seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso, esses povos deverão participar da elaboração, aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-los diretamente, sendo que neles a melhoria das condições de vida, de trabalho, de saúde e educação dos povos interessados deverá ser prioritária nos planos de desenvolvimento econômico global das regiões em que moram (art. 7º, itens 1 e 2). Diante disso, verifica-se que o desenvolvimento econômico global efetivamente sustentável pressupõe, não apenas o respeito, mas mais do que isso, a valorização e a prioridade do próprio desenvolvimento econômico, social e cultural desses povos tradicionais, como resultado de sua relação intrínseca com os recursos naturais, o que será possível de se atingir com a decisiva participação e controle coletivo também por esses povos na gestão ambiental e dos recursos hídricos, que já pressupõe, aliás, pela Lei 9433/97, que no Brasil seja efetivamente participativa e compartilhada, e fazer jus a justos quinhões de benefícios, de forma justa e equitativa, pela utilização sustentável dos recursos naturais, à luz da Convenção da Diversidade Biológica12, sem desconsiderar a cooperação do Estado. A justiça socioambiental e o controle pela sociedade da gestão das águas e do acesso aos conhecimentos tradicionais só serão efetivos com a participação dos povos tradicionais em todos os níveis de decisão, desde o planejamento dos programas e planos de desenvolvimento nacional, regional e local que lhes afetem direta ou indiretamente. É essa realidade que nos instiga a refletir sobre os parâmetros jurídicos e contornos normativos que eficazmente devem proteger a integridade do patrimônio genético e do meio ambiente ecologicamente equilibrado, pela efetividade do direito ao desenvolvimento dos povos tradicionais e de seus conhecimentos tradicionais e do direito à água de qualidade e ao saneamento, direitos humanos fundamentais que são. Crucial também nesse debate é a gestão do acesso aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade e do acesso à água de qualidade e ao saneamento básico, diante da interação eficiente dos órgãos envolvidos no desenvolvimento das políticas públicas desses setores, numa verdadeira governança hídrica e socioambiental, já que, em verdade, a sociedade não se depara frente a uma crise de escassez de água ou de aparente falta de regulação no acesso aos conhecimentos tradicionais, mas sim, diante de uma extrema crise de governança. 

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